25/08/2023 / Escola Miró, Texto

TEXTO 6: O CAMINHO SÓ EXISTE QUANDO VOCÊ PASSA

A equipe da Miró produziu uma série de textos reflexivos, que serão publicados periodicamente no nosso blog, com a provocação: Conteúdo é Isso! Para que possamos problematizar que modelo de educação está esculpido em nós e o que desejamos para nossas crianças e adolescentes.

TEXTO 6: O CAMINHO SÓ EXISTE QUANDO VOCÊ PASSA

Por Felipe Nassar – coordenador do Ensino Médio

 

“…direitinho deste jeito, sem tirar nem pôr, sem mentira nenhuma, porque esta aqui é uma estória inventada, e não é um caso acontecido, não senhor”.

(Guimarães Rosa)

Um pouco arredia e desconfiada, desorganizada e com baixa autoestima, Cecília (o nome é fictício, a pessoa, não) era uma aluna nova no Ensino Médio que “odiava escola”, pois nunca tinha se sentido reconhecida em nenhuma (“na escola tal, com certeza, nem sabem meu nome”). Ela nos dizia que seu cérebro não suportava o excesso de conteúdos transmitidos à sua revelia, e que tinha frequentes crises de ansiedade por “não se sentir normal”. Cecília achava que ela mesma era o problema e desconhecia sua potência criativa. Como a única autonomia que apresentava era a de pegar Uber e se movimentar pela cidade com relativa independência, peguemos também nosso Uber, avancemos pelas ruas, entremos por vielas desconhecidas pelo prazer da descoberta…

A primeira rua se revela (íngreme e tortuosa) na epígrafe que inicia este texto, quando o merecidamente aclamado escritor brasileiro Guimarães Rosa nos alerta para a diferença entre “fatos” e “invenção”: geralmente, as pessoas comuns acreditam que a verdade está no fato, enquanto a invenção estaria associada à mentira, à distorção. Nós, por aqui, refletimos: o que seria de um Einstein, um Freud ou uma Clarice Lispector, se a verdade estivesse atada a uma noção imaginária do que é a realidade? Dizendo em outras palavras: no fundo, é o contrário – os fatos são versões da realidade (senão a Globo seria idêntica à Jovem Pan, só para citar exemplos discordantes do jornalismo factual), por isso são distorcidos; agora, não há nada mais próximo de nossa verdade (como indivíduo, como sociedade) do que a invenção, que expressa o fundo, a subjetividade, a veracidade que é reconstruída por um olhar criativo singular e potente sempre em transformação.

Se estendermos essa percepção para o campo pedagógico, e aqui finalmente nosso Uber atinge uma grande avenida, pouco arborizada e com muita poluição, podemos chegar ainda a outras conclusões sobre a função da Escola na contemporaneidade; infelizmente, os grandes sistemas de ensino, valorizados em cidades como a nossa, priorizam a informação, a transmissão de conteúdo, o excesso de atividades, a terrível regra do “tempo é dinheiro”, aquilo que chamamos acima de “fatos”. Onde está a Escola que defende o debate, a reflexão sobre as oposições de ideias, a diversidade, a criatividade, a invenção? É com tristeza que vemos jovens adoecendo, de ansiedade e de depressão, porque, entre muitos motivos, frequentam uma Escola sem diálogo, preocupada apenas com a transmissão de conteúdo, voltada para o acúmulo perverso e voraz de informação, cheia de tabus e regras que as aproximam das velhas fábricas do século XIX da Europa. Perguntamos: o que é melhor – decorar “tudo” ou simplesmente compreender que o “tudo” é uma ilusão?

Sonhamos com uma educação na qual as pessoas sejam mais importantes que os sistemas – e aqui o Uber pega um caminho sem GPS, não há Waze que dê conta do lugar das nossas Pasárgadas. Para que isso se efetive, é preciso que trabalhemos com projetos, com abertura para o “não saber” e para possibilidades de criação; é preciso que a nossa subjetividade se encontre (e se desencontre) a partir do olhar do outro: sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Sonho que se sonha junto é realidade.

Agora nos vemos ensinando o caminho para o motorista; vamos em direção do sol, vamos em busca do mar. Dentre os inúmeros projetos deste ano no Ensino Médio da Miró (mais de quinze, que caminham por temas como “sustentabilidade” ou “cinema”), gostaríamos de registrar o Itinerário de Escrita Criativa, que produziu um livro de poesias inventado pelos estudantes (esse livro está sendo impresso no momento desta escrita; será disponibilizado no site da escola em outubro). Para além da subjetividade da tarefa, escrever poesias exige uma série de conceitos propostos pela nossa sequência didática, como Metalinguagem, Figuras de Linguagem, conhecimento de tendências literárias (das clássicas às modernas), domínio de regras gramaticais, Intertextualidade, entre outros saberes fundamentais para a vida e (pasmem!) para o vestibular.

É preciso aprender a comparar (o sinal de GPS volta, mas nosso Uber ainda não sabe qual caminho seguir). Nos grandes sistemas de ensino, os estudantes têm aulas (geralmente) expositivas sobre esses conceitos – na verdade, e temos até um pouco de constrangimento alheio ao constatar isso, os sistemas propõem aula 1, Metalinguagem; aula 2, Figuras de Linguagem; e por aí vai, até que, no final, sem que o estudante tenha produzido um texto sequer, os sistemas propõem uma prova de testes com todos os conceitos (que devem ser memorizados) com a pobre justificativa de que estão preparando os jovens para o vestibular. Definitivamente, conteúdo não é isso! De posse de um calhamaço de 38 aulas, cheias de conceitos, definições e exemplos rápidos, o estudante entra em crise de ansiedade e se pergunta por que se sente tão ignorante por não conseguir lembrar de tudo. No fim das contas, temos um processo de aprendizagem decoreba que só reforça e amplia aquilo que já sabemos sobre os jovens de nossa sociedade: eles não leem e, quando o fazem, não conseguem interpretar as entrelinhas; eles fazem mil contas, mas não conseguem contextualizar a Matemática.

E então nos revoltamos contra o GPS e falamos para o Uber a mesma frase que Samuel Rosa cantou de forma perspicaz: “o caminho só existe quando você passa”. É preciso ter coragem, e em educação, coragem é abdicar de um lugar “perfeito” de eterno saber, esse lugar de mestre para o qual muitos professores foram obedientemente treinados. Quando estudamos Metalinguagem, por exemplo, lemos autores clássicos e tradicionais, assistimos a trechos importantes de filmes profundos, escutamos músicas sobre as palavras, fizemos discussões sobre essa possibilidade da língua de pensar sobre ela mesma e deixamos significados em aberto, para que eles possam falar e escrever sobre – temos certeza de que nossos estudantes estarão até mais preparados para fazer o vestibular, além de carregar para a vida a experiência subjetiva que tiveram. No processo, todo mundo produz, dentro de seu próprio ritmo e estilo, lê em voz alta, troca seus poemas, é questionado e incentivado a ir mais longe… essa é a educação que queremos, esse é o verdadeiro conteúdo, que está mais centrado na capacidade de invenção do que na óbvia reprodução de informações.

E, assim, finalizamos nosso passeio, em alguma rua de Paris ou mesmo no alto de uma montanha na Serra da Canastra, ou em Cecília e seu incrível mundo. Ela quis mudar de Itinerário (eles são optativos), mas voltou atrás – “aqui não fico confortável, aqui preciso aprender através do outro e de mim”, foi o que lindamente ela nos disse, trilhando seu próprio caminho, sendo protagonista desse lugar novo criado também e principalmente por seu próprio discurso, seu rico olhar sobre o mundo:

 

O CAMINHO DO VENTO

O poeta não liga pro tempo

Ele entende que cada um tem seu momento

O poeta segue o caminho do vento

Ele conhece os bares, os pesares.

O poeta está pronto para terapia

Agora ele sente que é seu próprio guia

O poeta escuta seus desejos e apelos.

Ele não tem mais medo.

Foi-se o medo, foi-se a obrigação de perfeição, de “santidade”. E, no lugar da adolescente ideal, ficou uma pessoa que, enquanto aprende, ensina; ela continua com dúvidas, ainda se questiona sobre tudo, mas já encontrou em seu próprio caminhar alguns passos de sua própria existência.