15/09/2023 / Texto

TEXTO 7: SONHOS NÃO ENVELHECEM

SONHOS NÃO ENVELHECEM

A equipe da Miró produziu uma série de textos reflexivos, que serão publicados periodicamente no nosso blog, com a provocação: Conteúdo é Isso! Para que possamos problematizar que modelo de educação está esculpido em nós e o que desejamos para nossas crianças e adolescentes.

 

TEXTO 7: SONHOS NÃO ENVELHECEM.

Por Leo Tego – Coordenador do Ensino Médio

Um menino sentado numa banqueta alta de madeira. Olha o infinito procurando a linha que divide o céu e o mar – linha essa que sempre teima em nos confundir. A janela não olha, quem olha é o olho através da janela. Uma janela é uma abertura num elemento arquitetônico, tipo numa parede. Uma janela não é como fundo de uma caverna na qual as sombras são platonicamente projetadas. O que o olho recebe pode ser iluminação e vento. Mesmo sendo diferente do fundo da caverna, para além do que se vê, a janela ainda mantém seus resquícios de fragmento. Por ela ainda nos mantemos enquadrados: trata-se de um recorte! José Saramago afirma que nós vivemos dentro de uma possibilidade de ver que é nossa, isso significa que não vemos, regularmente, nem de menos, nem de mais. Para tornar mais claro ele exemplifica: Se o Romeu tivesse a habilidade visual de um Carcará, provavelmente não se apaixonaria pela Julieta, pois a pele dela não se pareceria com a pele que estamos condicionadas a relembrar. Pousemos novamente em nossa janela. Toda janela enquadra, seleciona. No entanto, isso não se refere ao fim. Enquadrar engendrará muito mais opções e escolhas do que aprisionamento. Para isso exige-se de nós formação de repertório. Uns diriam conteúdo. Sem embargos, tratemos disso a seguir.

Uma escola lida com infinitas possibilidades de experiências. Talvez vocês possam contra-argumentar que sabendo-se o número de estudantes, o número de professores, o número de funcionários, o número de prestadores, podemos, numa soma simples encontrar o resultado. No nosso caso o número é 99. São 9 dezenas e 9 unidades. Decompondo já ampliamos nossos horizontes. Dezenas e unidades instalam comunicação em rizoma deleuziano. Rompemos uma visão acinésica para dar movimento ao que se vê. As relações dentro da escola são parte fundamental do processo educativo. Optamos por dizer processo educativo para novamente destacar o movimento. Por mais polissêmico que o termo Educação possa ter se tornado, ainda sim, inúmeras vezes, acredita-se que ao cabo ela poderia ser analisada, descrita e mensurada de maneira estática. Olhar assim é como o Romeu de Saramago olhando Julieta. Ou se vê de mais – distorcido; ou se vê de menos – distorcido. O processo educativo também é una vista de la ventana. Devemos considerar quem olha, de onde olha, que dia olha, como acordou no dia que olhou, como olhou, se olhou, qual o tamanho da abertura, o tamanho da ventana, para quem contará o que viu, ou o que escutou de outro que viu também, entre tantas outras, talvez algumas perguntas que nem pensamos ainda…

Nas próximas linhas e parágrafos escreveremos sobre a nossa janela. Nela, a função dos conteúdos escolares não é se recriar em si mesmos, ao contrário, devem constituir o meio criado pela humanidade ao longo dos séculos para melhor compreender a realidade. Nas Ciências da Educação encontramos competências e o processo de atuação competente. Leiamos:

A competência consistirá na intervenção eficaz em diferentes áreas da vida, por meio de ações nas quais componentes atitudinais, procedimentais e conceituais são mobilizados, ao mesmo tempo e de forma inter-relacionada (ZABALA; ARNAU, 2007).

 

Portanto, o movimento observável, por nós daqui, consistirá em etapas diversas que culminarão numa ação concreta. A seguir a janela e a paisagem. Em primeiro lugar pensemos os batentes:

1 – Conceitos – aprendizagem de fatos (acontecem por meio de atividades de memorização e repetição verbal passam pela memorização); aprendizagem de conceitos (esses vão além da memorização, exigem compreensão significativa, são construídos a partir do conflito cognitivo: aquilo que o estudante sabe do mundo, uma proposta que problematiza seu saber e um novo conhecimento construído).

2 – Procedimentos – são atividades propostas de maneira gradual que envolvam observação, prática de atividades supervisionadas pelo professor ou de outros colegas e reflexão sobre o desenvolvimento das ações propostas, conclui-se o ciclo com exercitações que apliquem o modelo construído em outros contextos.

3 – Atitudes – fazem parte, regularmente, de vivências nas situações da escola nas quais os estudantes assumem atitudes por reflexo ou imitação, passa pelo processo reflexivo e envolvimento pessoal (ocorre aqui a construção da autonomia moral).

Dito isso, desejamos deixar claro que nos afastamos de um horizonte de aprendizagem apenas mecânica. Ao contrário, propomos uma aprendizagem significativa (o que não significa o abandono dos conhecimentos científicos produzidos pela humanidade, vide ponto 1 supracitado). Novamente, aprendizagem significativa exige funcionalidade, que ocorre quando um estudante conquista a capacidade de utilizar um conhecimento em determinadas situações de sua vida real. Distingue-se de utilitarismo uma vez que se refere a construção e ampliação de um mundo interno que se relaciona com o externo de maneira significativa. Imaginemos o quão cômico seria nossa lista de supermercado em formato de questões alternativas. Talvez uma boa problematização matemática seria: a quantidade de cursinhos pré-Vestibular é inversamente proporcional à eficácia de escolas tradicionais? O valor do ensino por competências não está dado a priori, mas sim na consequência da seleção que se pretende desenvolver: desfrutar, interpretar, comparar, organizar, analisar, redigir, agir, intervir, etc. Esse modelo de educação redefine o objeto de estudo: o conteúdo não está disposto conforme a lógica exclusiva de certas disciplinas, mas sim num conjunto de saberes selecionados, apresentados e organizados que auxiliarão os estudantes na resolução de problemas que: criem conflito nos conhecimentos prévios dos estudantes e os impulsione a responder a situações e necessidades reais. Ou seja, as sequências de atividades devem partir de problematizações que devem ser resolvidas pela construção de conceitos, procedimentos e atitudes. Para materializar a teoria descrita acima, retomemos, por exemplo, o texto 4: Portas: é melhor abrir para ventilar, de Karen Garretano (a relação de História e Geografia que sua filha construiu). Ou também, podemos reler o Texto 2: Alfabetização da Flávia Giubilei quando crianças, professores e saber constituem uma tríade horizontalizada que pensa e age sobre a escrita que existe no mundo e não somente nas cartilhas. Ou ainda, no texto 5: Gostar ou não gostar de Matemática: eis a questão? da shaskepeareana Cláudia Nakao quando pensamos em resoluções matemáticas e não só resolvemos mecanicamente um problema.

Todos esses exemplos incluem o menino que senta no banco diante da janela. Aquele que olha. Damos carne ao menino. Teoria para os gregos é ação de observar, examinar. Inclui e exige um sujeito que vê. Então para ver é necessário alguém. Mas para conhecer o menino precisamos averiguar o Zeitgeist que impregna sua atmosfera: uma sociedade do cansaço. Para Byung-Chul Han, nosso menino é hoje o sujeito do desempenho. Esgotado, depressivo, exausto. Cansado de lutar consigo mesmo e desgastado consigo mesmo. Ele deve ser um empreendedor de si mesmo. Se desvincula da negatividade das ordens dos outros e mergulha na perturbação narcisista do excesso de positividade. Sofremos, todos nós (crianças, professores e saber) uma violência da positividade que resulta da/na superprodução, superdesempenho e supercomunicação.  O menino do desempenho não consegue olhar a paisagem porque está inundado de um poder ilimitado o que impede de ver. Ele está mais rápido e mais produtivo, porém sofre de psychic infarcts: saturantes e exaustivos. Pensemos agora no banco que o menino senta. O seu desenho é a La nouvelle raison du monde (texto de Pierre Dardot e Christian Laval). Essa nova razão produz normas de subjetivação própria, recalcadas num “sujeito empresarial” – novas sanções, estímulos e comprometimentos que inauguram tipos de funcionamento psíquico hodiernos. Precisamos ressaltar que essa nova razão do mundo desperta alertas, principalmente por sua característica homogeneizante do pensar a humanidade pela lógica da empresa e, portanto, aniquilar a pluralidade das maneiras de existir, saber e agir. Esse tipo de banco que pertence ao espírito de nosso tempo fabrica um lugar de ver que permite apenas o sujeito unitário – o empreendedor de si mesmo é o sujeito do total envolvimento de si mesmo. Os dispositivos do discurso de que tudo depende de você, a subjetivação do empreendedor de si mesmo é encantador e convence porque é fácil. Fácil no sentido de enganar como fábulas infantis de príncipes encantados. Também instala distorções naquilo que vemos. Ao simplificarmos a existência como responsabilidade única e exclusiva do sujeito: mentimos! Isso porque escondemos a complexidade das relações (entre ver e ser visto, estar com e para o outro, inventar a si mesmo, etc.). Essa posição nos impõe uma visão autocentrada. Nem mesmo as sombras da caverna podemos observar, pois utilizamos nosso tempo centrados em nós mesmos.

Por fim, um ponto de encontro possível entre a nossa proposta de janela, o banco e o menino atual. Nossa perspectiva opera o resgate do sujeito ensimesmado, pois sua acuidade visual se perdeu num horizonte único da avaliação externa vestibular. O valor dessa avaliação é parte de um todo muito maior. Nosso processo educativo, esculpido em competências, propõe relação: entre sujeito que olha e janela que enquadra. Valorizamos a complexidade das amplas possibilidades de compreensão da vida. Valorizamos a multiplicidade, a diferença e a imanência. Construir saberes pertence ao campo de produções genuinamente circunstanciais. A formação se constitui no encontro do menino, o banco e a janela. Mas, para que o encontro aconteça, é preciso tempo, sentido, significado. É preciso sonho, menos espelhos e filtros, mais perguntas do que respostas, mais risos, menos império do sucesso, mais cuidado com o outro, menos competição.

Ah, Educação, quão dessemelhante estás e estou?

OBRAS CONSULTADAS:

ANTONI ZABALA E LAIA ARNAU, Métodos para ensinar competências.

BYUNG-CHUL HAN, sociedade do Cansaço.

PIERRE DARDOT E CHRISTIAN LAVAL, a nova razão do mundo – ensaio sobre a sociedade neoliberal.