22/12/2020 / Educação Infantil, Ensino Médio, Escola Miró, Fundamental 1, Fundamental 2
SUJOS QUINTAIS
Por Felipe Nassar – Coordenador do Ensino Médio e
Professor de língua portuguesa
“Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei em sujos quintais com tesouros”.
(Clarice Lispector, em “Desastres de Sofia”)
Lembro-me bem de um professor que tive no primeiro colegial. Eu estudava em uma escola municipal em São Paulo, e ele entrou no mês de novembro, quando o ano já se dava quase por acabado, para “tapar um buraco”: a professora anterior enlouqueceu – era o que queríamos acreditar. Nunca soube o que aconteceu com ela, mas aquele sujeito, em duas ou três aulas, fez o que ela nem de longe conseguiu fazer durante um ano inteiro. E olha que ela dava “matéria”, que era como resumíamos o aprendizado em português: um monte de nomes gramaticais (os quais vim a esquecer, e apenas anos mais tarde, depois de ter me tornado professor, é que fui começar a aprendê-los) e lacunas a preencher.
Ele, não. De cara, entrou na sala e exigiu a leitura de um livro (“A revolução dos Bichos”, de George Orwell) e um novo mundo se abriu para mim. Como ninguém tinha dinheiro sobrando, a compra do livro era um mistério que o professor tinha de resolver. Ele comprou cinco, e organizou uma sequência de leitura com oitenta alunos (!) – e nós, aliviados, líamos, porque nunca tínhamos visto aquilo… Então a aula de português poderia ser só aula de leitura?
Qual não foi minha surpresa quando, anos mais tarde, minha mãe encontrou esse mesmo livro, em edição antiquíssima, em seu armarinho de coisas perdidas. Lembro que abraçava o livro, lembro-me de seu cheiro – temos também um amor tátil pelas palavras? Desde aquele dia carrego comigo a sensação de que a literatura está sempre escondida em “sujos quintais”, em proibidos armários…
Qual não foi minha surpresa quando, semanas depois daquele ano letivo, em plenas férias de janeiro com tempo sobrando e nada para fazer (naquela época não existia a internet), alguém me disse que o professor estava morrendo. Corremos ao hospital e, ali, aquele homem, sem cabelos e debilitado fisicamente, recebeu um a um alguns alunos, conversando pausadamente. “Oh captain my captain!”, diríamos nós se estivéssemos em Hollywood, mas estávamos apenas na escola Tenente José Maria Pinto Duarte. Para todos, ele dizia alguma coisa de realmente verdadeiro – como ele poderia nos conhecer tão bem, sendo que ficara apenas um mês trabalhando com a gente, e nos tinha pedido apenas uma redação?
Nem sabia se de mim ele se lembraria, porque tive uma participação trágica. Lemos o livro durante o mês e, aos poucos, o professor foi nos mostrando as relações entre o livro e a história (e foi a primeira vez que ouvi falar em “comunismo” sem que houvesse ranços, ódios ou barbas, apenas porcos!). E, enquanto líamos, ele explicava outras coisas, mil, coisas que me levavam às nuvens e ao âmago de mim mesmo… Então aquilo seria possível em uma escola? Eu me acostumara à ideia de que escola era um lugar de onde deveríamos fugir, e de repente estava lá, lendo livros ao invés de jogar bola, discutindo questões sociológicas mesmo com o céu azul e as pipas sobrevoando nosso bairro, girando no espaço!
E não foi sem uma terrível tensão que escrevi a redação que ele pedira. Tema: “O meu amadurecimento”. Eu escrevia mal demais: além de erros ortográficos e gramaticais (engraçado como a educação tradicional nunca havia solucionado esses problemas ensinando apenas esses problemas!), realmente não sabia como controlar minhas ideias e meu texto ficou infantil, mal estruturado, repleto de incoerências e lugares comuns. Eu sabia que não sabia. “Não tinha base”, era o que se dizia.
No entanto, ele viu alguma coisa boa em meu reles texto de 25 linhas: até grifou uma frase! “…às vezes também sou um cavalo com a raça desperdiçada”. O que decididamente me encucou, porque eu havia pensado apenas em futebol, e achava a frase simplesmente ridícula. Mas o professor afirmou que eu estava dialogando com a “Revolução dos Bichos”, e que, em tal livro, os cavalos eram a massa trabalhadora alienada, e aquilo tudo me assustou… minha palavra significa outra coisa além dela mesma? E essa significação apontava para minha própria vida? Ele respondeu: “nem sim, nem não” (incrível como, no fundo, só me lembro destas palavras ditas de sua boca), mas também me disse outras coisas, como a rica possibilidade de vida que nos traz a linguagem, e falou com outras palavras, e eu entendi de outro jeito, porque era novo e só agora dou um significado para tudo aquilo…
Aquele homem, na cama do hospital, juntou para perto dele mais de dez adolescentes, talvez os piores adolescentes da pior escola que havia nos arredores; o bairro paulistano até não era de se jogar fora, mas dentro dele nossa escola era um quintal sujo e abandonado e nós estávamos felizes e tristes, contando piadas e brincando, com uma intimidade estranha, sentindo o cheiro da morte e da vida; eu sei o que ele significou para mim! Como um oráculo, ele me abriu as portas desse mundo, da investigação, do simbólico, do inexato, do desejo. Ele nos disse mais: afirmou que se arrependia de quase tudo o que fez na vida, menos de seu último mês de trabalho; nos falou que “ensinar é um ato de amor”, e que passou a vida inteira desconhecendo o óbvio. Ele nos deu a mão, e nunca nenhum adulto havia feito nada parecido.
Na porta do hospital, ainda fiquei um tempo olhando para o céu e para a rua, um pouco embriagado por descobrir-me vivo. E de lá saí trotando, altaneiro e equino, resolvido com a verdade que guardei dentro de mim.