22/12/2020 / Ensino Médio, Escola Miró

O EFÊMERO E O ETERNO

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“Confira Tudo o que respira Conspira”

(Paulo Leminski)

         Vejo a classe mergulhada de poesia quando me encosto na porta com ar contrariado: é uma sala muito disposta a tudo e isso me enche de medo, e às vezes me leva ao nada. Tento limpar os meus óculos porque vejo a sala bipartida, onde cada um é um duplo de desejos – eles não veem o profundo destas águas, embora também se espantem com a contradição entre o dentro e o fora, e se olham em espelhos com olhos assustados. Estão em águas turvas, ainda que não surdas ou mudas, em mudanças constantes.

Digo-lhes que tudo é muito simples e que se resume, em alguns momentos, a três pontos: a palavra é matéria, e só ela é só ela; a palavra tem fome, e frequentemente se serve, canibalisticamente, da própria palavra; a palavra se esconde, mesmo quando se mostra, exibida e galante, nem percebe os mortos que vela, escapa e ao mesmo tempo revela.

Então vi aquela classe tentando pensar no outro através dela; tentando olhar nos olhos do outro o que o mínimo reflexo se desvela: foi um ano duro e todos construíram seus objetos, seus bonecos – eram espelhos sem pontos de fuga, eram a única verdade e suas milhares de faces, presas pelo campo e livres numa cela.

Foi aí que decidi trabalhar (com muito gosto e muita presteza) os haicais e suas teias, que serviriam como autodefinição teatral, máscara em cadeia: ofereci um jantar de palavras e eles se serviram, alguns macambúzios, outros animados, nunca alimentados daquela ceia.

Forma estética de origem japonesa, o haicai clássico trabalha com apenas 17 sílabas divididos em três versos (de cinco, sete e cinco sílabas), e se propõe a falar da natureza e do presente a partir da transitoriedade da vida. Tem até torcida uniformizada, que impõe suas próprias regras, como, por exemplo, a de evitar metáforas para que a palavra seja a mais “pura” possível, ou mesmo a de trabalhar sem rimas para evitar uma musicalidade desnecessária. Aqui trabalhamos com um modelo bastante diferente do clássico, e por isso talvez impuro, e por isso talvez desnecessário: usamos Paulo Leminski, porque nele a palavra existe, e a regra aparece como referência a ser substituída ou recriada. Longe de ser apenas um transgressor, Leminski soube se ver não se vendo, no canto escuro e obtuso de um antigo caderno – soube ser efêmero sem temer o eterno.

Felipe Nassar

 

“Abrindo um antigo caderno Foi que eu descobri Antigamente eu era eterno”

(Paulo Leminski)