15/10/2019 / Educação Infantil

“Birra!” E agora?

Por Aline Pimenta – Professora Educação Infantil

Aspectos do desenvolvimento moral dos 0 aos 3 anos

Entre uma conversa e outra, temos percebido uma preocupação crescente das famílias em relação ao comportamento das crianças ao demonstrar descontentamento em diversas situações, principalmente em um acontecimento popularmente conhecido como “birra”. Achamos que esse tema “dá um caldo”, então vamos lá…Escola miro

Para começar, o que significa birra? O dicionário diz que se trata de uma

“Ação de quem permanece ou continua insistentemente num mesmo comportamento, opinião, ideia, etc.; teimosia. Consequência de quem contraria alguém por capricho, sem razão aparente, especialmente fazendo uma cena, chorando, gritando. Sentimento de antipatia, aversão; implicância. Falta de entendimento entre duas pessoas; rixa, zanga, aborrecimento…” (https://www.dicio.com.br/birra/).

Dada a definição do termo, vamos olhar para a fase de desenvolvimento que nossos pequenos e pequenas se encontram? Estamos falando de crianças entre um a três anos que acabaram de passar por um processo de se perceberem como alguém diferente da mãe, alguém que também tem vontades e desejos próprios, passando para a fase a qual Piaget, autor da Teoria da Epistemologia Genética, responsável por investigar o percurso do desenvolvimento infantil e a construção da inteligência, chamou de egocentrismo. Para ele (apud FONZAR, 1986, p. 81-103), “o egocentrismo infantil é a confusão inconsciente do ponto de vista próprio com o ponto de vista dos outros”.

E aqui vale um destaque, “confusão inconsciente”. Especificamente nesta fase, a criança não tem a intencionalidade consciente de chocar, agredir, provocar quem quer que esteja ao seu redor quando tenta impor suas vontades, ela quer tão somente ter os seus desejos, fortes e reais, atendidos. A criança não é capaz de perceber sozinha que para além de suas vontades existe o limite do outro. Ela ainda não possui autonomia moral para perceber até onde “pode” ir. E aqui o pode vai entre aspas, porque esse tema daria “pano para outra manga”. O que pode para mim, pode não valer para você. Nós adultos já possuímos um crivo, ou espera-se que tenhamos, para entender qual é nosso limite. Ainda que o “pode” seja relativo, o outro, as regras sociais, nos impõe limites por vezes coercitivos que nos forçam a entender a consequência de nossas ações. Eu posso ultrapassar o sinal vermelho? Até posso! Essa minha atitude pode gerar um problema e vou responder judicialmente por isso? Sim, então, na realidade, eu posso ‘mais ou menos’. O pensamento da criança bem pequena é mais objetivo, menos reflexivo. Eu quero o brinquedo que está na mão do meu amigo, ponto! Eu não quero tomar banho, ponto!

Jean Piaget olhou para essa característica do desenvolvimento infantil e nomeou a ausência do conhecimento sobre regras morais, sobre o certo ou errado, como anomia. Então se a criança ainda não possui capacidade cognitiva para fazer uma reflexão complexa, ponderar suas ações, temos uma consideração relevante: NESTA fase a criança não está fazendo birra assim como traz a definição do dicionário. Ela está apenas respeitando, reagindo a um querer que por vezes pode ser maior que ela. Então devemos entender que tudo bem impor suas vontades a qualquer preço? Entender que faz parte do processo e ponto? NÃO! Definitivamente, NÃO! Permitir que essa atitude se naturalize pode passar a mensagem para a criança que tal postura é uma forma legítima e adequada de comunicação e que independentemente de outrem o que vale sempre é o seu querer. E não é. É papel do adulto oferecer respaldo emocional, psicológico e limites aos pequenos, até porque nessa fase as crianças pensam, agem e aprendem pela imitação.  E é pela necessidade de agradar aos adultos com quem se relacionam e por quem tem afeto que elas se ajustam e começam a perceber o que é certo e errado.

O autor explica que o processo de construção da moral passa, inicialmente, da anomia, para a heteronomia (fase em que a criança precisa da mediação do adulto para respaldar as suas ações) e por fim, para a autonomia moral, que é agir em relação às regras morais por meio próprio. Esse processo e suas fases de transição são potentes para a consolidação da formação moral, por isso, é importante que as crianças tenham modelos de ações de cooperação, do exercício de olhar para o outro e das condutas do que é certo e errado. Assim, quando forem capazes cognitivamente, poderão aplicar com autonomia um pensamento crítico em relação às possibilidades de convivência, ao estabelecimento da empatia à elaboração, cumprimento ou não de regras estabelecidas.

Isso posto poderíamos antes de qualquer coisa mudar o título do texto. Quem sabe: A formação moral infantil e o papel do adulto.

E então você deve estar se perguntando: “Tudo isso é muito lindo, muito científico, agora quero ver agir com uma criança gritando, se jogando no chão, no meio da praça de alimentação do shopping em pleno sábado na hora do almoço porque quer tomar sorvete antes do arroz, feijão, bife e salada.” De verdade… eu entendo… E sinto dizer, não há uma regra ou cartilha de conduta. Nessas horas há o bom senso, bom e velho amigo que dificilmente falha.

Em primeiro lugar, uma dica importante pode ser antecipar o que vai acontecer, assim a criança não cria expectativa diferente da proposta para o momento e mesmo que inicie uma situação de inquietação, o adulto terá como retomar o combinado: “Primeiro almoçar. Lembra do nosso combinado?”

Não deu certo e a criança não conseguiu se organizar. Não expor a criança é outra dica importante. Pegá-la no colo e levar para um lugar reservado, estabelecer uma conversa de poucas palavras e olho no olho também pode ser uma estratégia potente. “Você está chateado. Eu entendo. Mas chorar não vai resolver. Vamos lavar o rosto e almoçar.”

Outro aspecto importante é cumprir combinados. Deixar claro o valor do sim e do não. Pense antes de compartilhar uma decisão com a criança e escolha as “batalhas” que valem a pena travar. É um problema a criança ir à escola com uma meia de cada cor? Não. Então tudo bem, não fale o não primeiro para depois ceder. Agora, é um problema a criança não querer trocar a fralda? Sim e disso não dá para abrir mão.

Retomando o que defende Piaget, lembra sobre a criança ter uma tendência a realizar ações que parecem agradar aos mais velhos por quem tem algum afeto? Pois bem. Deixar claro em poucas palavras quais são seus limites pode ajudá-las a entender onde termina o delas. “Assim eu não gostei. Doeu”. Ela pode não compreender o seu discurso, mas é sensível e sem dúvidas seu tom de voz, sua feição, postura corporal deixarão claro que a atitude não está bacana.

Crescer é forte, é potente, é transformador! Pode gerar ansiedade e insegurança para todos os envolvidos. Aos poucos cresce a criança, crescem os pais, os professores. Do mesmo modo cresce o amor, a cumplicidade, o respeito a empatia. Cada criança é única e responde de formas diferentes ao meio, às intervenções e aos estímulos. Compreender minimamente como se dá o desenvolvimento infantil nos ajuda a diminuir o juízo de valor e a olhar com o distanciamento necessário para interagir da melhor forma possível nas “saias justas” com os pequenos. Educar é um processo repetitivo, cíclico, que passa pelo conflito, acomodação e assimilação. Com paciência e, porque não, firmeza em algumas situações, dizer não é também uma forma de amar. É promover com o respaldo emocional e afetivo do adulto que eles confiam, e, portanto, sentem-se seguros em demonstrar seus conflitos internos, momentos de frustração que serão comuns em todas as fases da vida, assim como nós adultos bem sabemos. E se em alguns momentos nada adiantar, um abraço forte e sincero pode trazer a serenidade, a calma e o acalento que pede o momento.

Por ora ficamos por aqui, já pensando na próxima demanda, nos próximos marcos de desenvolvimento, cientes de nossa responsabilidade e da potência de nosso convívio para esses pequenos por quem temos tanto apreço.

REFERÊNCIAS:

CAETANO, Luciana Maria. A epistemologia genética de Jean Piaget. ComCiência, n. 120, p. 0-0, 2010. Disponível em: http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-76542010000600011&lng=e&nrm=iso&tlng=pt . Consulta em: 19 set 2019.

FONZAR, Jair. Piaget: do egocentrismo (História de um conceito). Educar em Revista, n. 5, p. 81-103, 1986. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-40601986000100006 . Consulta em: 19 set 2019.

PEREIRA, Denise Rocha; MORAIS, A. Desenvolvimento moral: o que a educação infantil tem a ver com isso. Revista Eletrônica de Psicologia e Epistemologia Genética, v. 8, n. 2, p. 105-137, 2016. Disponível em: file:///C:/Users/Aline/Downloads/6642-Texto%20do%20artigo-21487-1-10-20170124.pdf . Consulta em: 19 set 2019.