03/02/2017 / Fundamental 2, Nossa Escola

ELISABETH, A GRAMÁTICA E OUTROS PORMENORES

Felipe Nassar – professor de Língua Portuguesa Fundamental 2

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Não tenho muita saudade das aulas da Professora Elisabeth, da sexta série (atual sétimo ano) da escola municipal Tenente José Maria Pinto Duarte, em São Paulo; a escola ficava em cima de um morro e tinha uma quadra rachada no meio – havia, inclusive, uma jogada que inventáramos, em nossas pelejas disputadíssimas, que trabalhava com o elemento surpresa do “morrinho” atacante. Não é preciso ser boleiro para entender: em torno de uma das áreas da quadra, havia uma sublevação do terreno, causada pelas extensas chuvas (e claro que não pela falta de grana e manutenção). Usávamos esse levantamento absolutamente impositivo, dadas as condições naturais do ambiente, como tabela, ou como um elemento a mais de proteção, ou como um quinto atacante, sempre pronto a surpreender. Mais ou menos como Garrincha, sintoma e exemplo máximo do brasileiro, que nasceu com as pernas tortas e, também por isso, inventou o drible e mudou para sempre o futebol mundial… nós, garrinchas no sonho, transformávamos o prejuízo em lucro.

Mas não é justo, muito menos saudável, que eu desperdice o meu tempo (e, consequentemente, o seu) falando mal da minha antiga escola, como se lá só houvesse desgraças. Elisabeth, enfim, não era uma desgraça. Era uma senhora um pouco malcuidada, despenteada, corcunda e, aparentemente, cansada; usava seus óculos redondos sempre na ponta do nariz, tinha bom-humor e era tranquila, apesar da bagunça descarada que fazíamos do início ao fim da aula. Às vezes, quando escuto os doutores atuais falarem da falta de disciplina nas escolas, e quando ouço esses tais doutores, que aparecem com frequência na internet e na televisão, todos bem vestidos e maquiados, dizerem que antigamente havia disciplina, fico pensando que “antigamente” será esse… Estudei no ensino fundamental na década de 80 e sei que, há quarenta anos, a Escola, como as instituições em geral no Brasil, nunca foram exatamente exemplos de lugares  disciplinados e disciplinadores; não que não tentassem reverter a situação, mas sempre o fizeram abusando de um autoritarismo hipócrita e incoerente, copiado até hoje pelos “doutores” já citados, e que apresenta péssimos resultados (analisando com otimismo) no quadro da educação brasileira atual. É conhecida a ideia de Mário Sérgio Cortella, de que somos a escola do século XIX, com professores do século XX, ensinando crianças do século XXI – todo mundo gosta dessa citação, alguns sem perceber que ele está criticando prioritariamente o modo como nós, da educação atual, insistimos em repetir velhas técnicas do passado, sem refletir moralmente sobre isso, para pessoas que serão o futuro. Sim, não devemos jogar fora o passado (inclusive e principalmente os erros cometidos no passado), mas não precisamos repeti-lo por simples medo da inexorável mudança. Agora, se estamos nos referindo a 1960 quando falamos de “na minha época havia disciplina” nas escolas, desculpem-me, mas não vale, era outra escola, outra sociedade, outro sujeito em questão. O que dizer de um sistema escolar que forma, ao fim do que chamamos hoje de terceiro colegial, apenas 0,03 % dos alunos que entraram desde o que chamamos hoje de primeiro ano do primeiro grau? Quem trabalha com escola, nos tempos atuais, trabalha com quantidade e heterogeneidade, mesmo nas escolas particulares – apenas copiar o modelo antigo (que é o que é feito em alguns lugares escolares hoje) não traz resultados positivos, porque o contexto é completamente outro e o ser humano também.

E retorno à Elisabeth porque ela era o passado, já no presente dela, mas não era, e novamente me sinto com a obrigação de falar a verdade, autoritária, aparentemente onipotente, como os doutores de hoje. Ela tentava, e isso me basta por ora. Concluamos que só isso é pouco e por aqui continuemos. Ela usava o livro didático com a sequência proposta por ele, e que se resumia ao seguinte: um texto ou pedaço de texto introdutório – era a melhor parte, porque pelo menos líamos alguma coisa. As perguntas eram de uma imbecilidade marcante: a gente poderia, por exemplo, responder à questão 03, que abordava explicitamente o parágrafo três do texto, sem ler o anterior nem o posterior das palavras. Depois vinha algum comentário (na época, com altas doses de moralismo) sobre o tema trabalhado pelo texto. E, para finalizar o capítulo, o setor mais importante: algo como “para escrever certo”, onde se ensinava a gramática de forma descontextualizada, com frases soltas, com uma nomenclatura excessiva que decorávamos para a prova (ou pedíamos cola para o “Carlinhos” e ficávamos esperando pela sua boa vontade enquanto fingíamos que estávamos pensando profundamente) e que depois esquecíamos. Não conheço pessoa de quarenta anos que, no meio de uma conversa, pergunte: “você usou uma Oração Substantiva Objetiva Direta Reduzida de Infinitivo para imitar a entonação portuguesa?” Não, não conheço e, você, leitor, também não conhece. E não venham me citar os “doutores” de suas convivências… Até os gramáticos são suficientemente inteligentes, em geral, para não usar essa linguagem de forma descontextualizada e sem sentido.

E foi assim que, no fim da oitava série, quando me despedia daquela escola que muito me ensinou sem, exatamente, cumprir suas próprias metas, descobri que sabia pouco ou quase nada do que tinha estudado. E era, pasmem, um bom aluno, com boas notas, com algum discernimento. E por mais que gostasse de Elisabeth, de seu jeito doce e do seu ar antiquado, não conseguia sequer escrever uma história. Tinha aprendido ortografia porque lia bastante, tinha aprendido alguma coisa, sim, com Elisabeth (já disse duas vezes que não posso ficar só a criticando), mas me lembro que decidi “escrever uma história” por conta própria. Sentei em minha boa escrivaninha, abri um caderno velho e peguei uma caneta bacana. Mas embora tivesse tido uma intensa sequência de ensino-aprendizado gramatical, embora tivesse ótima ortografia (porque, afinal, independente da escola, meus pais me incentivavam a ler), eu simplesmente não sabia como escrever uma história; não conseguia interpretar o que as capas dos jornais diziam; não conseguia me interessar pela palavra que pulava viva na minha frente; adorava televisão (era década de 80) e odiava a aula de português.

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            Nesses muitos anos de Miró, dentre várias situações gostosas e profundas, acostumei-me a uma não muito alentadora, mas, talvez por isso, digna de análise: quando um aluno sai do sexto ano da escola e vai seguir sua vida escolar, a partir do sétimo, em outra escola da cidade. Salvo algumas interessantes exceções, geralmente vem uma crítica a partir da voz desse outro lugar: “o sujeito está atrasado em português”. O fato do aluno ainda não ter aprendido “adjunto adnominal” ou “objeto direto”, quando o outro lugar diz que era necessário que ele já tivesse aprendido, provoca pânico nos pais. Mais que isso: há uma certa estupefação, vinda de muitas outras escolas, que contamina pais e mestres, e que se resume a uma frase que vai parecer um pouco psicótica, mas é real, então toma lá: “se ele não aprendeu adjunto adnominal, o professor de português ensinou o quê?”

É preciso que nos questionemos sobre qual deve ser o objetivo de um curso de Língua Portuguesa. Fato é que há um vazio, um imenso hiato, um precipício profundo entre o que se conclui nas universidades sobre o ensino e o estudo de línguas, o modo como usamos a linguagem no dia a dia e o que se pratica nos ensinos fundamentais brasileiros. Não faz muito tempo, por exemplo, que passei por uma experiência sagaz em outra escola: em uma semana anterior ao início das aulas, encontrei-me com outros professores para escrevermos nossos planejamentos anuais. Como eu era novo naquela escola, perguntei a uma professora (que diziam ser a mais experiente da minha área) como era, mais ou menos, o formato dos planejamentos anuais daquela escola. Ela me respondeu: “é só você copiar o índice do livro didático”; fiquei um pouco desnorteado. Essa escola está viva e é bastante conhecida em Ribeirão Preto. Ocorreu-me então observar e ler o índice do livro didático: quem sabe agora aprenderia alguma coisa sobre o “novo currículo das escolas”? Em todas as épocas há um presidente novo, um prefeito novo, um método novo e totalmente transformador. O livro didático tinha uma capa bonitinha, chamava a atenção para o “estudo contextualizado” e, de fato, é preciso que se diga, não sou contra livros didáticos – sou contra o uso sistemático, pouco criativo e engessado que se faz dele; sou contra transformar seu índice em planejamento anual. E quando leio o índice daquele livro não me surpreendo com o fato de ele ser quase que rigorosamente idêntico ao livro didático que as escolas do Município na cidade de São Paulo usavam na década de 80… Inclusive e principalmente o formato: um texto inicial seguido de perguntas cansativas e pouco significativas; um comentário sobre o tema trabalhado no texto (com alguma coisita a mais: pelo menos, em nossa época, os livros didáticos já falam, ainda que vagamente, sobre gêneros discursivos); e a gramática, com suas múltiplas frases descontextualizadas e seus nomes precisos. No final, exercícios pouco criativos e muito repetitivos, com raras exceções.

Das duas, uma: ou as escolas do Município na década de 80 eram excelentes, ou as escolas atuais, insistindo no mesmo erro, estão ultrapassadas. Ou uma terceira opção: a educação brasileira é surpreendente, profunda, interessante e, além disso, consegue resultados excelentes… para que mudar o que já deu certo, não é mesmo?

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O que fazer, então, no curso de língua portuguesa? Fato é que, hoje, é imperativo que se instaure na escola a prática da análise textual (concebendo “texto” como uma noção ampla, que inclui desde bulas de remédio a romances; desde um vídeo no youtube até um filme de três horas). Cuidado com a palavra: “análise”. A grande maioria das pessoas de 30 a 60 anos acredita que “análise”, em Língua Portuguesa, só pode ser “análise sintática”, ainda que essa imensa maioria não saiba mais dizer o que é nem para que serve um adjunto adnominal. A gramática é uma parte importante da língua, mas reparem no detalhe fundamental, é uma “parte”, não é o todo. Ensinada isolada, ela é completamente inútil e insuficiente – mesmo que servisse para o aluno aprender gramática, o que já seria bom, não seria essencial: há uma série de pessoas que conseguem escrever e falar textos absolutamente insignificantes, e incoerentes, e superficiais, e preconceituosos, sem cometer nenhum erro gramatical. No entanto… no entanto, trabalhar significados, coerência, profundidade, entre outros, não parece ser o papel da escola.

Mas esses são os focos principais do estudo do ciclo 5 de Língua Portuguesa (sexto e sétimo anos): no ano passado, estudamos os conceitos de “representação”, “metalinguagem”, “sentidos literal e figurado”, “ambiguidade”, “polissemia”, entre outros. Neste ano, estudaremos “Intertextualidade”, o “contexto histórico”, “estrutura narrativa” (e a posterior diferenciação de crônica, conto, fábula, etc), o “gênero dramático”, o “texto publicitário”, entre outros. Há muito o que se fazer em um curso de língua portuguesa, e a gramática faz parte desse curso – se no ano passado estudamos 5 classes morfológicas (substantivo, adjetivo, artigo, numeral e pronome), neste ano retomamos essas cinco classes estudando outras 5 (verbo, advérbio, interjeição, preposição e conjunção), acrescentando a esse estudo noções de acentuação e ortografia. A diferença, em relação a outras escolas, situa-se em dois pontos: quanto ao conteúdo, só começamos análise sintática no oitavo ano (trata-se apenas de como o estudo é organizado, nada mais); quanto à forma, a abordagem da gramática é completamente diferente. E como ela se dá? A gramática não se esgota na simples classificação de suas categorias e, como já foi dito, aprendida isolada e descontextualizada, é inútil, só serve para decorar para a prova. A gramática tem de ser um instrumento para ajudar o sujeito a entender e interpretar um texto: por mais que não pareça, há um sentido no fato de aquele texto trabalhar muito com verbos de estado (“ser” e “estar”), ou com verbos no Imperativo (“beba coca-cola”), ou com verbos no pretérito perfeito. E é em busca desses sentidos que deve se dar o estudo gramatical.

Ou seja, quando se lê um texto, não basta realizarmos perguntas bobas para testar se o aluno compreendeu o que está dito; não basta retirar uma palavra do texto e pedir sua classificação gramatical. Ler um texto é também se perguntar como é dito aquilo que é dito; para quem é dito e por quem é dito; com quais estratégias discursivas e argumentativas aquilo foi dito; quais os efeitos explícitos e implícitos daquele dizer; e, finalmente, com que recursos lexicais e gramaticais aquele texto disse e por quê. Aqui, nesse último tópico, encontramos a gramática, uma parte importante do ensino de língua, mas…repito: uma parte, simplesmente, que deve ser aprendida tendo o estudante a dimensão do todo, apreendendo aquilo dentro de contexto reais, para que ele se torne realmente autor do que fala e escreve, e não o papagaio que a maioria prefere formar.

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            Outro detalhe me incomoda demais: dentro daquele velho discurso constrói-se outro, o de que a Miró é uma escola “fraca”, enquanto aquela outra (aquela cujos professores fazem o planejamento copiando o índice do material didático) é “forte”. E por que se diz isso? Porque naquela escola é difícil de passar de ano. O professor ensina um monte de nomes gramaticais, os alunos têm de decorar tudo aquilo, respondem exercícios em que não precisam ser críticos ou criativos, totalmente descontextualizados com frases toscas com lacunas, e isso é a escola forte. Repito: se esse método desse certo, hoje o Brasil apresentaria resultados maravilhosos nos testes de leitura mundiais a que somos submetidos. Mas estamos entre os últimos lugares no quesito “compreensão e aprofundamento da língua materna”, perdendo de goleada para países como Estados Unidos ou Cuba (ou seja, tanto faz a ideologia do país), e achamos, com a inteligência de nossos admiráveis doutores, que a solução é continuar fazendo mais do mesmo, retomando antigas formas disciplinadoras e ultrapassadas. O aluno mudou, mas a escola continua tentando errar da mesma forma. Não seria agora a hora da mudança?

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            O problema é que nós temos resistência a toda e qualquer mudança. Preferimos nos agarrar ao velho e errado já conhecido, do que nos aventurar em busca de algo novo. Fato é que a prática pedagógica atual predominante está centrada em certezas supostamente irrefutáveis, está pouco aberta a novas tentativas, têm medo da renovação do discurso, do desconhecido, daquilo que escapa ao círculo já montado e sobre o qual não se tem o que pensar.

E é realmente uma loucura, das piores de todas as loucuras, a educação brasileira: ela se mantém presa a certezas absurdas, aparentemente inabaláveis, chamando de “fortes” escolas que insistem em uma educação anacrônica que não dá certo, que não produz alunos críticos, que não reinventa nossos problemas, e que ainda crucifica novas propostas que serão chamadas de atrasadas porque não privilegiam o ensino descontextualizado de nomes como “adjunto adnominal”. É um traço da loucura a sua permanente certeza no delírio: conheci um sujeito que dizia ser a reencarnação de Amon-Rá, se dizia o Deus-Sol, o patrono dos faraós. E ele sabia tanto do Egito Antigo que cheguei a ficar na dúvida, sei lá, se não era eu que… enfim, se não era eu que estava louco, achando-me sujeito do século XXI. Ser louco é se agarrar a certezas, e acreditar tão piamente nelas que será necessário, portanto, transformá-las em método de ensino, onde o que fica é o sistema, e o que vai, pelo ralo, é o próprio sujeito e sua consciência duvidosa.

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            Ainda assim há uma pulga atrás da minha orelha (ainda bem que não é piolho) quando relembro Elisabeth. Sem dúvida, daria para o leitor perceber aqui meu discurso incoerente – ele critica sua professora antiga, mas com quem ele aprendeu adjunto adnominal?

É, mas essa pulga pula para outros trapézios da minha consciência, fazendo-me perceber que guardo com alguma saudade as aulas de Elisabeth no meu coração. Entretanto, não, querido leitor, não foi com ela que aprendi adjunto adnominal: naquela época só decorava e tive problemas com a gramática até a faculdade. Uma vez conheci uma pessoa, assaz filósofa, que me ensinou verdadeiramente gramática, uma pessoa que copio descaradamente na minha prática profissional, mas essa é outra história e outro dia contarei a todos vocês (bom, provavelmente não contarei nada, na verdade, mas fica bonito escrever desse jeito, dá um ar de narrativa a um texto quase acadêmico como o meu).

De todo modo, Elisabeth está guardada nas minhas memórias porque, apesar da aparência cansada, apesar de entrar na sala com quinze diários de classe, cheios de pontinhos e marcas azuis e vermelhas, ou talvez por causa de tudo isso – por ela ter olheiras e mesmo assim, antes de começar a aula, sorrir para algum aluno que já fazia um comentário inicial… pelos diários, pelas olheiras e pelo sorriso, carregarei para sempre essa professora comigo, como um segredo que a gente não tem como contar, como um enigma numérico que prescinde de todas as palavras. E assim, essa pulga se vai, pulando para meus ombros e procurando outras orelhas para incomodar…